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sábado, 12 de setembro de 2009

casa de penhores parte1






CASA DE PENHORES
tragicomédia em 2 atos

de Isis Baião

Casa de Penhores
(em sua versão para o francês, Mont-de-Piété)
trouxe para o Brasil um dos 7 prêmios do concurso
1997 Onassis International Cultural Competitions - Theatrical Plays,
que teve lugar em Athenas-Grécia.

Casa de Penhores
Tragicomédia em dois atos

de Isis Baião
Sinopse
Dora, 45 a 55 anos, datilógrafa desempregada, é cliente assídua da Casa de Penhores, onde empenha as parcas jóias da Mãe, figura onipresente e comicamente mórbida. É casada com Eduardo, 45 a 55 anos, jornalista mal pago, bêbado. No sufoco, Dora resolve ganhar a vida confeccionando, para o Instituto de Controle da Mortalidade, coroas de defunto, cujas flores são feitas com os vestidos da Mãe, criando assim um novo estilo mortuário. O Instituto, órgão do Ministério da Saúde, aumenta progressivamente as encomendas, mas não paga, levando Dora ao desespero. Sem saída, mas loucamente determinada, ela apela para uma solução insana e inusitada.

Nesta peça, Isis Baião “mistura, com um humor às vezes cruel, o absurdo, o farsesco, o grotesco, o macabro, ligados por uma visão feminina de mundo, dentro de um contexto político-social” (opinião de Fred Clark - PhD em Literatura Brasileira na North Caroline University -, que estuda a obra da autora)

Casa de Penhores, em sua versão para o francês, Mont-de-Piété, foi uma das sete peças premiadas pelo 1997 Onassis International Cultural Competitions - Theatrical Plays, em Athenas (Grécia). Ao concurso, concorreram 1.470 textos, de 76 países.

Elenco mínimo: 3 atrizes e 3 atores

CENÁRIOS

1º ATO

CASA DE PENHORES E, DENTRO DESTA, A CASA DE DORA.

2º ATO

IDEM, COM AS MODIFICAÇÕES INDICADAS NO TEXTO.
NO DECORRER DO 2º ATO, A CASA DE DORA VAI FICANDO CADA VEZ MENOR E MAIS VAZIA, ENQUANTO A CASA DE PENHORES CRESCE, ENGOLINDO A OUTRA.

1º ATO

CENA 1 - NO PREGO
APRESSADOS E ANSIOSOS ENTRAM UM HOMEM E DUAS MULHERES. FAZEM FILA. EM SEGUIDA, ENTRA DORA, ESBAFORIDA, COLOCA-SE NO FINAL DA FILA. INQUIETA, OLHA O GUICHÊ VAZIO, METE UMA BALA NA BOCA, DEPOIS ACENDE UM CIGARRO (DORA SEMPRE ALTERNA OU MISTURA BALAS E CIGARROS). À SUA FRENTE, MADAME, SENHORA EMPERTIGADA, ABANA-SE FEROZMENTE COM UM LEQUE. O HOMEM FAZ CONTAS NUMA MAQUININHA, BALBUCIANDO NÚMEROS. A PRIMEIRA DA FILA, UMA MULHER GRÁVIDA, TENTA FAZER CROCHÊ E RESMUNGA. ESSAS PESSOAS FALAM SOZINHAS OU PENSAM ALTO. E, QUANDO PENSAM ALTO, A VOZ DOS SEUS PENSAMENTOS SAI EM OFF, SOANDO MAIS ALTO DO QUE O NORMAL, ENQUANTO SUAS BOCAS APENAS MEXEM.

DORA - (PENSANDO ALTO) "Se a cólera que espuma, a dor que mora n'alma..." Diabo, onde ouvi isso? Maluquice de quem madruga... Bem, até que tem pouca gente hoje... (METE UMA BALA NA BOCA)
MADAME - (PENSANDO ALTO) Se dona Carlota Joaquina, minha mãe, me visse nessa situação, morreria de vergonha! Que humilhação! (ABANA-SE MAIS FEROZMENTE) Onde vamos parar? Daqui a pouco as pessoas de bem estarão tão miseráveis quanto a ralé! Que absurdo!
DORA - (PENSANDO ALTO) Odeio essas balas de hortelã! Me sinto fazendo propaganda de pasta de dente na televisão! E me dão uma puta azia! (TENTA ARROTAR)
HOMEM - (FAZENDO CONTA NA MAQUININHA E RESMUNGANDO) Sessenta de feira, cento e cinquenta e cinco de supermercado... (PENSANDO ALTO) Merda de mulher que resolveu botar três fedelhos no mundo... três vampirinhos nojentos nas minhas costas. Comem feito animais! Bicho ridículo é mulher, umas vacas parideiras...
DORA - (PENSANDO ALTO) "Se a cólera que espuma... " Hum, tô pirando... Gente estranha essa, parece que tá indo pr'um matadouro! Será que tô com cara de vaca? (SORRI) Balas horríveis. Comprei pensando que eram de limão. Gato por lebre. Merda.

DORA MASTIGA RUIDOSAMENTE. MADAME A OLHA COM DESPREZO E HORROR.

MADAME - (PENSANDO ALTO) Gentinha mal educada! Que diria o Menezes me vendo aqui, ele que está escrevendo um livro sobre a minha árvore genealógica! (SUSPIRA, ABANA-SE) Um nome sem dinheiro já não vale mais nada! Ai de mim!
M. GRÁVIDA - (PENSANDO ALTO) Não fosse essa barriga, ele teria me assaltado... Veio por trás, já tava colado em mim - ai, ainda sinto um frio na espinha!... Deve ter visto a barriga e desistiu... Uma gravidez ainda tem seu valor...
MADAME - (PENSANDO ALTO) Esses funcionariozinhos se fazem esperar como se fossem patrões ou generais. Que absurdo!
DORA - (PRA MADAME) Desculpe, acho que já a conheço... talvez daqui mesmo...
MADAME - (CORTANTE) A senhora está enganada. É a primeira vez que venho aqui.
DORA - E está gostando? (PENSANDO ALTO, MUITO RÁPIDO) Meu Deus, que que eu disse!
MADAME - (COLÉRICA) Não estou habituada a esses ambientes! (PENSANDO ALTO) Atrevida! Não se pode dar conversa a essa gentinha!
DORA - Sinto muito.

MADAME CORTA O PAPO VIRANDO-SE TOTALMENTE DE COSTAS PARA A OUTRA.

DORA - (PENSANDO ALTO) Comendo merda e arrotando caviar! (PARA SI MESMA, BAIXO) Meu Deus, acho que estou dando pra pensar alto! (OLHA O RELÓGIO) Vou ter que arrumar atestado médico pra justificar essa falta. Tipo nojento aquele chefete!
HOMEM - (PENSANDO ALTO, ENQUANTO FAZ CONTAS) Não vai dar... Não é possível, essa máquina tá exagerando... Máquina nojenta, corrupta! (ATIRA A MAQUININHA PELA JANELA. OUVE-SE UM BAQUE)
VOZ DE FORA - Aaaaaaiiiii! Filho da puta!

O FUNCIONÁRIO ABRE O GUICHÊ. HÁ UM CERTO ALÍVIO NA ANSIEDADE GERAL. O FUNCIONÁRIO FAZ UM SINAL. NERVOSA, A MULHER GRÁVIDA GUARDA O CROCHÊ, SUSPENDE A BATA DE GRÁVIDA E RETIRAUM PEQUENO EMBRULHO DA BARRIGA, QUE É FALSA.

FUNCIONÁRIO - (IMPACIENTE) Vamos, minha senhora, o tempo é ouro!

AS PESSOAS NA FILA TAMBÉM SE IMPACIENTAM. MAIS NERVOSA, A MULHER ENTREGA AO FUNCIONÁRIO O PEQUENO EMBRULHO, CONTENDO UMA PULSEIRA E UM ANEL INSIGNIFICANTES. O FUNCIONÁRIO JOGA AS JÓIAS SOBRE A BALANÇA.

FUNCIONÁRIO - Cinco gramas. (FAZ UMA CONTA RÁPIDA) Tirando os juros e comissões... (SUSSURRA ALGUMA QUANTIA)
M.GRÁVIDA - (DECEPCIONADÍSSIMA) Só????
FUNCIONÁRIO - (IMPASSÍVEL) Leva ou fica?
M.GRÁVIDA - É...
HOMEM - Resolva, minha senhora, tem muita gente na fila.
M.GRÁVIDA - É, que jeito?... fica.

ELA RECEBE O DINHEIRO, ENFIA-O NA BARRIGA FALSA E SAI CABISBAIXA.

HOMEM - Qual a cotação do ouro?

O FUNCIONÁRIO BALBUCIA ALGUM NÚMERO.

HOMEM - Como? Semana passada tava mais alta! (VOLTA A FAZER CONTAS NA MAQUININHA)
FUNCIONÁRIO - Baixou!
MADAME - Baixou? O ouro, um metal nobre, baixou? Isso é baderna, pouca vergonha! Que absurdo!
DORA - Só a temperatura sobe. 40 graus, ouvi no rádio. Calamidade pública!

MADAME OLHA DORA COM O MÁXIMO DE DESPREZO.

FUNCIONÁRIO - Meu senhor, por favor, o tempo é ouro!
HOMEM - Estou aqui há meia hora esperando pelo senhor. Agora me espere. Tenho que refazer algumas contas.
MADAME - (PENSANDO ALTO) Homem organizado! Se o cretino do meu marido fosse assim organizado, não estaríamos ficando na miséria!
HOMEM - Há previsão de quando vai subir?
FUNCIONÁRIO - Imprevisível...
HOMEM - Pode subir...
FUNCIONÁRIO - Ou baixar...
HOMEM - O senhor é um baixo astral! (VIRANDO-SE PARA OS OUTROS) Estão vendo, é por causa de tipos como esse que vivemos intranquilos.
MADAME - O senhor tem toda razão, mas resolva-se, estou com pressa.

O HOMEM ABRE A BRAGUILHA E RETIRA UM BOLO DE JÓIAS. GEME.
O FUNCIONÁRIO PESA AS JÓIAS E FAZ CONTAS.

MADAME - (PENSANDO ALTO) Espera infernal! Deixei o "Arthur" trancado na área de serviço. A esta hora já fez cocô na área toda, só pra me fazer raiva. Cachorro mau caráter!
FUNCIONÁRIO - 255, líquidos. Fica?
HOMEM - E o senhor acha que tenho saco de ferro? Essa merda quase que me arranca os testículos! Quanto disse?
FUNCIONÁRIO - 255, líquidos.
HOMEM - Isto é roubo, extorsão!
FUNCIONÁRIO - Não tenho nada com isso. Sou apenas um funcionário da casa.
HOMEM - Desse puteiro, o senhor quer dizer!
MADAME - (PARA SI MESMA) Que linguagem! Gentinha baixa! Onde estou metida! Que humilhação! (ABANA-SE FRENETICAMENTE)
FUNCIONÁRIO - Leva ou fica?
HOMEM - Espere, deixe eu conferir esta sua conta.
MADAME - (PENSANDO ALTO) O cretino do meu marido vai me pagar por este vexame!
DORA - (PENSANDO ALTO) Os balangandãs da velha não vão dar pra pagar metade do aluguel! Família sem jóias é uma inutilidade hoje em dia!
FUNDIONÁRIO - Fica?
HOMEM - Fica com essa porra.

O HOMEM RECEBE O DINHEIRO E SAI RESMUNGANDO E APALPANDO O SACO DOLORIDO.

MADAME - Quanto estão cobrando de juros?
FUNCIONÁRIO - O mesmo, não baixou nem aumentou.
MADAME - O mesmo, qual? O senhor pensa que vivo no prego? É a primeira vez que venho aqui, primeira e última! Vim porque nesta cidade selvagem já não posso usar minhas jóias e nem o cofre está livre desses assaltantes assassinos. Vim para guardar aqui as minhas jóias. Não pense que estou matando cachorro a grito. A propósito, ande depressa que deixei o meu dálmata trancado na área de serviço e ele é muito sensível.
DORA - (PENSANDO ALTO) Ai, que nojo! "Se a cólera... " Que saco!
FUNCIONÁRIO - (JÁ EXAUSTO) A senhora ainda não me entregou as jóias.
MADAME - E o senhor ainda não me respondeu a pergunta, seu atrevido. Me responda: quanto pagarei de juros?
FUNCIONÁRIO - 24 % de juros e comissões.
MADAME - Mais do que nos bancos? O senhor não tem vergonha?
FUNCIONÁRIO - Não tenho nada com isso. Sou apenas um funcionário da casa.
MADAME - O senhor trabalha aqui e não sabe porque cobram juros maiores do que nos bancos?
FUNCIONÁRIO - Sou apenas um funcioná...
MADAME - E não tem opinião própria?
FUNCIONÁRIO - Bem, acho... bom, aqui a senhora não precisa ter saldo médio pra receber o empréstimo.
MADAME - Empréstimo? Que empréstimo, se vou deixar as minhas jóias aqui com o senhor?
FUNCIONÁRIO - Comigo não. Não tenho nada com isso. Por favor, minha senhora, o tempo é ouro.
MADAME - O ouro não está valendo mais nada, pelo visto. Aquele senhor tinha razão e se eu fosse homem meteria um soco nessa sua cara cínica.

A CARA DE POBRE COITADO DO FUNCIONÁRIO PERMANECE IMPASSÍVEL. MADAME RETIRA UM PACOTINHO DE JÓIAS DE ENTRE OS SEIOS E ENTREGA.

MADAME - Chegue a balança mais para cá. Estou cansada de ser roubada no peso.
FUNCIONÁRIO - 44 gramas, confere? (FAZ A CONTA RÁPIDO E BALBUCIA UM VALOR) ... tirando os juros e comissões...
MADAME - Se não roubam no peso, roubam nos juros e não se tem a quem reclamar. Que absurdo!
FUNCIONÁRIO - Leva ou fica?
MADAME - Fica, que já fiquei horas nesta fila. Que insensatez!

ELA RECEBE O DINHEIRO, METE-O ENTRE OS SEIOS E SAI. DORA APROXIMA-SE DO GUICHÊ.

DORA - Já estão aceitando prata?
FUNCIONÁRIO - Só ouro.
DORA - Não é prata 90, é prata de lei, antiga...
FUNCIONÁRIO - Desculpe, só aceitamos ouro.

ELA RETIRA AS JÓIAS DE DENTRO DA MANGA DO VESTIDO E AS ENTREGA. O FUNCIONÁRIO DESCONFIA DE UMA DELAS, MORDE-A.

DORA - É ouro branco...
FUNCIONÁRIO - Metal ordinário, desculpe. (DEVOLVE A PEÇA E FAZ CONTAS)
DORA - (PENSANDO ALTO) Velha mentirosa. Deve ter escondido a verdadeira.
FUNCIONÁRIO - (BALBUCIA UM NÚMERO) Fica ou leva?
DORA - (DESESPERADA) Só? Não é possível. Há seis meses botei no prego essas mesmas jóias e recebi mais!
FUNCIONÁRIO - (EXAUSTO) A cotação do ouro baixou. Leva ou fica?
DORA - Ainda tenho dois dias pra pagar o aluguel. Será que não sobe de hoje pra manhã?
FUNCIONÁRIO - Sou apenas um funcionário da casa. Leva ou fica?
DORA - Que jeito! Fica.

RECEBE O DINHEIRO E VAI SAINDO.

DORA - (PENSANDO ALTO E RÁPIDO) "Se a cólera que espuma, a dor que mora n'alma e destrói cada ilusão que nasce. Tudo que punge, tudo que devora o coração no rosto se estampasse. Se se pudesse o espírito que chora..."
FUNCIONÁRIO - O próximo...



CENA 2 - CASA DE DORA

ENTRA DORA FALANDO SOZINHA.

DORA - Aviso prévio! Isso bate como sirene de alarme em tempo de guerra! Daqui um mês estarei sem garantia de que posso viver como gente... (GRITA PARA O INTERIOR DA CASA) Está me ouvindo, tio? Você sabe o que é uma guerra, não sabe? Pois é, daqui um mês você estará sem talco. Sim, porque o seu talco é mais supérfluo do que a minha comida, você não acha?
MÃE - (DOS FUNDOS) Não fale assim com o seu tio, Dora.
DORA - Foda-se, minha mãe. (TROCA DE ROUPA ENQUANTO FALA) Pelo menos receberei uma boa bolada. Férias e fundo de garantia, foi o que a psicóloga me disse. Você sabia, mãe, que as grandes empresas agora têm uma psicóloga só pra dizer pr'os funcionários demitidos que eles logo logo arrumarão um novo emprego? Maravilha, né?
MÃE - (DO INTERIOR) Têm o que?
DORA - Uma psicóloga.
MÃE - (APARECENDO) Dora, minha filha, não se meta com essa gente. Essas psicólogas só prestam pra aconselhar mulher a se separar do marido. Não viu a Zuleika? Vivia tão bem com o marido... (DESAPARECE)
DORA - (ARRUMANDO A CASA) Não se trata disso, mãe. Foi só uma terapia rapidinha pra desempregado. Ela fez uma entrevista enorme comigo. Primeiro me perguntou como que eu estava me sentindo. Sabe que que eu respondi? Ar-ra-sa-da, e buáááá... Depois que acabei de chorar, ela me disse que eu estava encarando uma simples dificuldade de maneira negativa, que eu estava cheia de expectativas catastróficas, que deviam ser reflexos da minha infância. Mãe, eu tive uma infância catastrófica?
MÃE - (DO INTERIOR) Você foi uma criança linda e alegre. Gostava de apagar cigarro em rabo de gato. Seu pai fumava muito. Eu sempre detestei cigarros. Você está fumando muito, Dora!

DORA ATRAPALHA-SE. JOGA FORA O CIGARRO. METE UMA BALA NA BOCA.

MÃE - (DO INTERIOR) Isso, chupe balas, é melhor.

DORA ATRAPALHA-SE NOVAMENTE. IRRITA-SE. COSPE A BALA. ACENTE OUTRO CIGARRO.

DORA - Bruxa! (RECOMPÕE-SE E CONTINUA A TRABALHAR) Então ela me disse que a vida está cheia de coisas boas, que aquela empresa não é a única e que esta cidade oferece mil oportunidades de emprego a mulheres capazes como eu. Um alto astral a psicóloga, você não acha?
MÃE - (DO INTERIOR) Fora da família, só confie no padre... se for velho.
DORA - (REPENTINAMENTE ENFURECIDA) Burra, idiota, que o diabo te leve e te espete o rabo para sempre!
MÃE - (APARECENDO) O talco do seu tio acabou, Dora.
DORA - Sinto muito. Ele vai ter que ficar sem talco.
MÃE - (ENÉRGICA) Você sabe que ele não pode!
DORA - Vai ter que poder. Talco é perfumaria e perfumaria é supérfluo. Muito caro para uma desempregada.
MÃE - (DOCE) Faça um sacrifício pelo seu tio, minha filha.
DORA - Pegue a farinha de trigo. Substitue muito bem o talco.
MÃE - Só hoje. Amanhã, eu exijo um talco para o seu tio. (SAI RESMUNGANDO) Já não se tem carinho nem respeito com os parentes. É por isso que o mundo está assim. Só é bom o que é novo. As tradições, a moral, já não têm nenhum valor... (SOME)
DORA - (GRITANDO) Mãe, não gaste muita farinha de trigo. Aprenda a poupar.
MÃE - (DO INTERIOR) Só tem dois dedos!
DORA - Pois deixe um.

ENFIA UMA BALA NA BOCA E COMEÇA A PROVIDENCIAR O JANTAR.
ENTRA EDUARDO.
DORA - Boa noite, pelo menos.
EDUARDO - Boa noite.
DORA - Recebí aviso prévio.

EDUARDO NÃO REAJE, APARENTEMENTE. DESPE-SE E VESTE UM PIJAMA VELHÍSSIMO.

DORA - Você me ouviu? Recebí aviso prévio. Significa que daqui a um mês estarei desempregada.
EDUARDO - Não se preocupe. Eu aguento a barra.
DORA - Aguenta? Como? No mês passado nós tivemos que tirar a pensão dos teus filhos do meu salário. E sabe quanto deram no prego pelas jóias da velha? Bem menos do que há seis meses atrás. A cotação do ouro baixou.
EDUARDO - A inflação continua a subir. Este povo não é de nada.
DORA - Não me vem com política hoje. Acho que você não entendeu bem. Estou desempregada. Os nossos salários juntos já não davam pras despesas...
EDUARDO - Sei, sei. Você é mais um desempregado de classe média. A situação do povo é pior.
DORA - Você não tem jeito mesmo!

EDUARDO PEGA UMA BEBIDA, SENTA-SE E ABRE UM JORNAL.

DORA - Eles te pagaram os 40% de aumento?
EDUARDO - Ainda não.
DORA - E você não reclamou, não cobrou?
EDUARDO - Claro. Mas não adianta, a revista não está indo bem.
DORA - O dono dela está rico!
EDUARDO - Grande descoberta!
DORA - Escuta aqui, por que vocês não fazem greve, hein? Como o pessoal do ABC. Você vive falando nos operários!
EDUARDO - Não diga burrice. Operário é outra coisa. A classe média não acredita em luta de classe. O brasileiro médio só luta pra ser um "self-made-man".
DORA - Chega, Eduardo. Só quero saber como que a gente vai se segurar nos próximos meses... Você já começou a beber essa vodca vagabunda. Quando era uisque bom, ainda vá lá...
EDUARDO - A classe média está baixando de padrão, proletarizou-se. Foi o que lhe valeu o pacto com o sistema!
DORA - Você vai morrer de cirrose e o sistema 'tá se lixando. Vem jantar, vem.
EDUARDO - Não estou com fome.
DORA - Você nunca está com fome. Bebendo desse jeito...

ENTRA A MÃE.

MÃE - A farinha de trigo estava com bichos. Tive que passar farinha bichada no seu tio.
DORA - Melhor, assim aproveitou a farinha. Já não ia servir pra fazer bolo. Venha jantar.
MÃE - Não estou com fome.
DORA` - Não pode estar. Você come o dia inteiro!
MÃE - Só comi uns biscoitos.
DORA - A lata de biscoitos!
MÃE - (TRÁGICA) Você me nega biscoitos? A mim que sacrifiquei a vida por você? Como é triste envelhecer!
EDUARDO - (JÁ MEIO BEBADO) Chantagem emocional! Neurose da família e alimento da tragédia melodramática pequeno burguesa!
DORA - (CONFUSA) Mãe, não se trata disso. Só quero que você se alimente melhor. Eduardo, vem jantar, larga esse jornal.

EDUARDO VAI PRA MESA LEVANDO JORNAL E COPO.

MÃE - Dora, você devia convencer seu marido a deixar a bebida. Seu pai não tinha vícios. Um chefe de família deve ter um comportamento exemplar.
DORA - Não adianta, ele quer beber!
MÃE - Minha filha, com jeito uma mulher consegue tudo de um homem...
DORA - Não me venha com essas suas teorias de mulher aranha. Deixe o meu marido em paz. (VIOLENTA) Pare de beber, Eduardo, e coma. (BOTA COMIDA NO PRATO DELE) E larga esse jornal. Já fica às voltas com jornal o dia inteiro...
MÃE - Bem que eu te disse! Se você tivesse se casado com um médico ou com um engenheiro... Não soube se dar valor...
DORA - Chega, mãe, chega.
MÃE - Estou apenas dizendo que seu marido é um fracasso. É a pura verdade!
DORA - (NÃO MUITO CONVICTA) Não é verdade.
MÃE - É. O homem vale o quanto ganha.
DORA - (CONFUSA) Não é verdade. Ele é um grande jornalista, só que não está sendo valorizado. (COM RAIVA) Eduardo, olha o teu pijama. Já cansei de costurar os rasgões, o tecido tá se desmanchando. Isso é pijama de um jornalista?
MÃE - P'ro salário que ele ganha, tá muito bom!
DORA - Pare de agredir o meu marido. Sou eu que estou sem emprego, não ele.
MÃE - Você não precisaria ter emprego se o chefe da família não fosse um bunda mole.
DORA - (FEROZ) Saia daqui, saia!
MÃE - Ainda não acabei de comer.
DORA - Já comeu o bastante. Saia!
MÃE - (TRÁGICA) Você não tem pena da sua pobre mãe que está morrendo!
DORA - Mentira! Você não morre nunca.

A MÃE SAI.

DORA - (PARA EDUARDO) Saia você também.

ELE SAI DA MESA, DISTRAIDAMENTE, LEVANDO O JORNAL E O COPO. DORA CHORA BAIXINHO, ENQUANTO RETIRA OS PRATOS, LAVA A LOUÇA, ETC. POR ALGUNS SEGUNDOS, SÓ SE OUVE A ÁGUA CAINDO DA BICA.

DORA - Você já pagou a pensão dos teus filhos este mês?
EDUARDO - (VOZ BEBADA) Não.
DORA - Não sei porque você fez esses filhos... nem gosta de criança!... (ESPERA UMA REAÇÃO QUE NÃO VEM) Também não sei como fez esses crianças, trepando uma vez por ano... Só muita coincidência e pontaria... (ESPERA NOVAMENTE) Também não sei pra que se casou de novo... não liga pra mulher... Foi só pra ter uma idiota pra te cuidar, fazer tua comida, passar tua roupa, cuidar dos teus porres... Eduardo, você está me ouvindo?

ELE GRUNHE.

DORA - Quando que você vai crescer e virar homem? Tô de saco cheio da tua inutilidade. É muito fácil sonhar com a alvorada dos povos quando se tem em casa uma imbecil pra segurar as barras do dia a dia. (ESPERA UMA REAÇÃO) Tá cheio de idéias revolucionárias, mas é um machão como outro qualquer, não me ajuda em nada. Porra, eu não aguento falar sozinha o tempo todo! Você é um morto-vivo! Merda, merda, merda!

EDUARDO CONTINUA IMPASSÍVEL.

DORA - (FRAGILIZADA) Eduardo... desculpe. (ESPERA) Diga alguma coisa. Quer um pouco de gelo?

ELE NÃO RESPONDE. ELA VAI ATÉ ELE. VÊ QUE ELE ESTÁ IMÓVEL, O OLHAR PERDIDO NO VAZIO.
DORA - (ANGUSTIADA) Eduardo... você está me vendo? (ESPERA. DESESPERA-SE) Eduardo, onde está você? Diga alguma coisa. Desculpe, eu não quis te ofender... pelo amor de Deus, me olha! (AGARRA-SE A ELE) Duda, meu amor, não fica assim longe de mim, eu não suporto, eu tenho medo, eu morro de medo... Duda, você tem razão, eu sou uma alienada. (SACODE-O) Briga comigo, me xinga...
EDUARDO - Estou bebado.
DORA - Não faz mal. Olha pra mim, me diz alguma coisa, diz que você está comigo... Então faz um discurso político, fala do materialismo dialético... Então, fala: sou um dos maiores jornalistas dessa merda de país! Então, conta o sequestro do embaixador...
EDUARDO - Pára com isso. (EMPURRA-A)
DORA - Você ainda me ama?
EDUARDO - Me larga. (EMPURRA-A BRUTALMENTE. ELA CAI) Vou vomitar. (SAI CAMBALEANDO)

OUVE-SE O BARULHO DO VÔMITO.

CENA 3 - NO PREGO
O FUNCIONÁRIO ESTÁ NO GUICHÊ. TEM OLHEIRAS PROFUNDAS, GESTOS LENTOS, ESTÁ MAIS DÉBIL, A VOZ MAIS FRACA E MONÓTONA. PARECE QUE FOI AFIXADO NAQUELE GUICHÊ. O CALOR É SUFOCANTE. ELE TRABALHA E OUVE VOZES.

FUNCIONÁRIO - (FALA E ESCREVE) Um par de alianças de casamento, com os nomes Pedro e Salete gravados. (PESA AS ALIANÇAS) Tirando juros e comissões...
VOZ 1 - (COM UM GEMIDO UTERINO) Desgraçado! Que a tua mulher te meta um par de chifres! Que o teu filho seja morto pela polícia! Que o teu rabo arda de hemorróidas! Que...

ELE BALANÇA A CABEÇA E ENXUGA O SUOR DO ROSTO.

FUNCIONÁRIO - (FALA E ESCREVE) Relógio de pulso, marca "Seiko", com defeito, dourado, redondo, corrente de plástico imitando couro. Tirando os juros e comissões...
VOZ 2 - Que um câncer te coma os intestinos!

ELE TAMPA OS OUVIDOS E VOLTA A ESCREVER.
FUNCIONÁRIO - Um cordão de ouro, fininho, com uma medalha de Nossa Senhora Aparecida. A medalha é oca. Tirando...
VOZ 3 - (DESESPERADA) Espera, deixa eu beijar a minha santinha pela última vez...

O FUNCIONÁRIO ENXUGA O SUOR DO ROSTO. PEGA UM PEQUENO EMBRULHO. DEMORA A DECIFRAR O SEU CONTEÚDO. JOGA O OBJETO SOBRE A BALANÇA COM NOJO.

FUNCIONÁRIO - Obturação de ouro de um dente humano, provavelmente um canino. Tirando... (A VOZ FALTA. ELE DESMAIA COM A CARA NO PRATO DA BALANÇA)

CENA 4 - CASA DE DORA


DORA ESTÁ À FRENTE DE UM ESPELHO IMAGINÁRIO, QUE PODE SER O PRÓPRIO PÚBLICO. OLHA-SE DE VÁRIOS ÂNGULOS. APROXIMA-SE.

DORA - Deixa eu te ver mais de perto, Dora. Será que você está mesmo ficando velha e não tinha percebido?!... Você se levantava tão bem dispostas todas as manhãs! ... trabalhava o dia inteiro! ... À noite, a tua pele era quente, tinha brilho... (SORRI, MALICIOSA E COQUETE) ... até ressuscitava um marido inútil para o ofício... Quantas vezes, Eduardo te possuiu sem saber! (RI) A tua febre ressuscitava um pau bebado... (RI MAIS, UM RISO NERVOSO) Um pau bebado, expelindo vodca! Um pau bebado... Tenho o útero cheio de vodca! (PÁRA DE RIR DE REPENTE. OLHA-SE NOVAMENTE DE PERTO NO ESPELHO IMAGINÁRIO) Mas agora, Dora, você está ficando velha... já nem querem te dar emprego! "Desculpe, mas a senhora já ultrapassou o limida da idade..." Aí eu me senti velha, assim, de repente!... Bem, até a Brigitte Bardot ficou velha! Será que ela percebeu isto antes dos patrões?

A MÃE ENTRA. VEM DO INTERIOR DA CASA, NO SEU ANDAR DE MORTA-VIVA.

MÃE - Dora, você está aí?
DORA - Parece que sim, mãe.
MÃE - Tempo maldito! Há três dias que o seu tio não toma sol!
DORA - Deve estar fedendo.
MÃE - Mentira. Ele foi um homem ilustre.
DORA - Os tempos mudaram.
MÃE - Tempos malditos!
DORA - Esquente-o com o meu secador de cabelo.
MÃE - É um desrespeito para com um homem ilustre.
DORA - Pois bote ele ao lado do fogão. (NT) Mãe, eu estou ficando velha?
MÃE - Você é uma mulher de meia idade. (SAI)
DORA - O que vem a ser isso? Mãe, e uma mulher de meia idade não pode trabalhar, ser feliz, viver, como qualquer outra? Me sinto tão bem! (OLHA-SE NOVAMENTE NO ESPELHO IMAGINÁRIO) É, estou muito bem. Dora, você está ótima! Pena que os patrões não pensem o mesmo... (DÁ DE OMBROS)

ENTRA HELENA, A PRIMEIRA MULHER DE EDUARDO.

HELENA - Desculpe, a porta estava aberta...
DORA - No teatro a porta sempre está aberta. É pena que nem sempre as pessoas entrem... Quantos anos você tem?
HELENA - Não vim aqui pra lhe dizer a minha idade.
DORA - Já sei. Eduardo não pagou a pensão dos teus filhos.
HELENA - Dos nossos, meus e dele.
DORA - Meus é que não são.
HELENA - É, ele não quis ter filhos com você. Não sei porque...
DORA - Eu que não quis. Aliás, não quero. Não vou me arriscar a ter filhos aleijados ou dementes. Ou você não sabe que um pai alcoólatra...
HELENA - Os meus filhos são perfeitos!
DORA - A demência muitas vezes só se manifesta na idade adulta. As taras também...
HELENA - Você odeia os meus filhos.
DORA - Impressão sua. Aceita uma bala? Leve essas pras crianças.
HELENA - Obrigada. Não gosto que eles comam balas.

DORA MASTIGA UMA BALA, ACENDE UM CIGARRO.

HELENA` - Tenho telefonado todos os dias pro Eduardo. Ele manda dizer que não está. Nunca aceitei pensão dele. Tenho o meu emprego e não preciso de pensão de ex-marido, mas preciso que ele ajude a criar os filhos dele.
DORA - Tem toda razão.
HELENA - Por isso vim aqui.
DORA - Mas eu não tenho nada com isso. Mês passado, tirei do meu dinheiro pra pagar o colégio dos teus filhos. Este mês não estou a fim. Aliás, nem que estivesse, não poderia, estou desempregada.
HELENA - Problema de vocês.
DORA - Nosso, infelizmente.
HELENA - Não vou abrir mão dessa pensão, nem que tenha que botar o Eduardo em cana.
DORA - Bote. Umas férias na cadeia não fariam mal ao Eduardo. Pelo menos, limparia o corpo da bebida...
HELENA - Que tipo de mulher você é?
DORA - Uma mulher que aguenta um bebado, que você não aguentou.
HELENA - Ele não bebia tanto quando estava comigo.
DORA - Não? Não mesmo? Então por que você o deixou?
HELENA - Não lhe interessa.

APARECE A MÃE.

MÃE - Dora, não se fala mal do marido pra pessoas estranhas.
DORA - É a ex-mulher dele.
MÃE - O marido agora é seu. Eu não queria esse casamento com homem desquitado, mas você quis. Deus te castigou.
DORA - Desquitado não, divorciado.
MÃE - É a mesma porcaria. Cadê o álcool do seu tio?

A MÃE DESAPARECE.

DORA - (CONFUSA, IRRITADA) Pare de me ouvir atrás das portas, velha bisbilhoteira!
MÃE - (DO INTERIOR) Dora, não pague pensão de filhos dos outros.
DORA - Vá à merda. (METE UMA BALA NA BOCA, NERVOSA)
HELENA - (SORRI COMPREENSIVA) Igualzinha à minha mãe. Parecem paridas pela mesma mãe!

AS DUAS RIEM.

HELENA - Você está mesmo desempregada?
DORA - Olha alí o monte de classificados. Todo dia olho e vou à luta...
HELENA - Não conseguiu nada?
DORA - Todos os empregos são pra moças de vinte e poucos anos. Eles não confiam em mulheres com mais de trinta...

RIEM COM DEBOCHE E CUMPLICIDADE.

DORA - Você tem um bom emprego, né? Ministério da Saúde?
HELENA - Há 18 anos. Agora estou lotada no Instituto de Controle da Mortalidade.
DORA - Não conhecia este!
HELENA` - Pertence ao Ministério da Saúde. Foi criado recentemente.
DORA - Ah!... Pra que?
HELENA - Pra controlar a mortalidade, que aumentou muito nos últimos anos. Trabalho no Serviço de Prevenção ao Suicídio. Somos 40 funcionários no SPS. Passamos o dia inteiro tentando convencer às pessoas a não se suicidarem.
DORA - (PERPLEXA) É! Que interessante!
HELENA - Interessante? É um inferno! Temos uma cartilha com 133 argumentos. Nenhum convence. Eles se matam na cara da gente! Estouram os miolos na cara da gente!
DORA - Que horror! E ninguém toma o revólver?
HELENA - Não adianta. Se tomar o revólver, eles se jogam do 15º andar, se fechar a janela, eles bebem soda cáustica, não adianta. E a gente ainda tem que providenciar coroas de flores pra esse bando de irresponsáveis...
DORA - E por que as famílias deles não fazem isso? Por que vocês?
HELENA - Sei lá. Deve ser pra dizer que o Governo tem o maior carinho com os seus defuntos. É uma loucura. Vivo atrás dos fornecedores de coroa de defunto...
DORA - Também uns irresponsáveis, imagino.
HELENA - Não, coitados. É que não dão conta. É serviço demais!...
DORA - Espere. Você disse que os fornecedores não dão conta? Então quer dizer que tá faltando fornecedor?
HELENA - Está.

DORA DÁ UM PULO E ABRAÇA HELENA.

DORA - Você acaba de me arrumar um trabalho! (GRITA) Mãe, arrumei um emprego. Vamos sair da merda. Vamos enriquecer, mãe!
MÃE - (DO INTERIOR) Seu pai sempre teve essa mania, Dora. Morreu pobre.
HELENA - (PERPLEXA) Que que você vai fazer?
DORA - Coroas de defunto. Vou ser sua fornecedora.
HELENA - Não se meta nisso. Você vai enlouquecer. Não é só o Instituto, a freguesia é enorme...
DORA - Tanto melhor. Helena, você me salvou da miséria!
HELENA` - Não se meta nisso. Olha, tô te avisando, escuta, eu não te contei...

MAS DORA JÁ NÃO A OUVE.
DORA - Vou pagar a pensão dos teus filhos com o primeiro dinheiro que receber. Você merece. (DÁ-LHE UM BEIJO ESTALADO)
HELENA - Dora, escuta...
DORA - Vou começar a trabalhar agora. Aprendi a fazer flores de pano quando era mocinha. Ainda sei.

A MÃE REAPARECE.

DORA - Mãe, vou precisar deste seu vestido roxo, agora! (VAI DESABOTOANDO O VESTIDO DA MÃE)
MÃE - Dora, você está louca! Pare com isso. Respeite sua mãe, filha ingrata! Só tenho este ...
DORA - Vista o vestido que você herdou da sua mãe.
MÃE - As traças comeram a metade. Dora, não me dispa na frente de estranhos. Saia, moça, saia.

HELENA, QUE ESTAVA PETRIFICADA, SAI CORRENDO.

MÃE - Dora, você já arrancou as minhas jóias... agora...
DORA - Mãe, vou ganhar muito dinheiro. Vou tirar suas jóias do prego. Vou lhe dar quantos vestidos roxos você quiser. Mas, agora, preciso deste.
ACABA DE ARRANCAR O VESTIDO DA MÃE. A MÃE ESTÁ AGORA DE COMBINAÇÃO DE ALÇAS LARGAS. SAI CORRENDO PROS FUNDOS DA CASA. DORA COMEÇA A TRABALHAR.
EDUARDO ENTRA BEBADO, CANTANDO A INTERNACIONAL COMUNISTA.

CENA 5 - NO PREGO
O FUNCIONÁRIO TEM OLHEIRAS PROFUNDAS, COR ARROXEADA E OS CABELOS EM PÉ. ESTÁ IMOBILIZADO PELO PÂNICO. HÁ APENAS QUATRO CLIENTES EM CENA, MAS O RUÍDO É DE MULTIDÃO DEVORADORA. CADA UM DOS CLIENTES CARREGA UM OBJETO, QUE VAI DO SIMPLES LIQUIDIFICADOR À PEÇA MAIS ESTRANHA. OS CLIENTES NÃO TÊM IDENTIDADE COMO NA CENA 1. ELES FAZEM PARTE DE UMA MASSA CARENTE, PERDIDA, DESESPERADA.

CLIENTE 1 - Abre logo essa merda! (DÁ UM SAFANÃO PARA UM LADO) Se me empurrar de novo, meto-lhe um tiro na cara.
CLIENTE 2 - Moço, deixei o meu filho de dois anos trancado no apartamento. Não posso esperar mais.
CLIENTE 3 - Isso é uma falta de respeito. Vou esperar mais cinco minutos, se não abir essa joça, vou meter o pé...
CLIENTE 2 - Ai, meu pé!
FUNCIONÁRIO - Por favor, não empurrem. Façam fila, por favor. Ordem é progresso. Sem ordem não pode haver progresso. Por favor...
CLIENTE 1 - Ordem coisa nenhuma, seu rato de gaveta.
CLIENTE 4 - Fica aí bem sentado e a gente aqui mofando...
CLIENTE 2 - Estamos aqui há três horas...
FUNCIONÁRIO - Não tenho culpa. Sou apenas um funcionário da casa. Estou esperando ordem superior.
CLIENTE 3 - Ordem superior, o cacete! Abre essa porra que eu quero entrar. Vou falar com o chefe. Quero falar com o dono dos porcos.
FUNCIONÁRIO - Impossível. É proibida a entrada de pessoas estranhas.
CLIENTE 1 - E há tipo mais estranho do que tu com essa cara de fuinha?
CLIENTE 3 - Com quem tu pensa que tá falando, hein, ô meu?
CLIENTE 1 - Isso mesmo. Vou entrar e tu vai se arrepender se me impedir...
FUNCIONÁRIO - Por favor. Cumpro ordens...
CLIENTE 4 - O senhor vai se dar mal, vou ligar pro meu tio general.
CLIENTE 3 - Vamos derrubar essa merda, agora!

EMPURRAM O GUICHÊ.

VOZES - Derruba! Derruba! Derruba!
TELEFONISTA - (OFF) Chamada urgente. É da Casa de Penhores. Urgente. Urgentíssimo. Há ameaça de saque e linchamento.
VOZES - Lincha, lincha, lincha!

LUZ SÓ SOBRE OS DOIS HOMENS EM CENA, QUE, DE COSTAS, FALAM AO TELEFONE.

GERENTE - Excelência, desculpe interromper o seu sono...
EXCELÊNCIA - Não desculpo. Vou demití-lo, seu incompetente.
GERENTE - Pelo amor de sua veneranda mãe, Excelência, deixe-me explicar. A situação é calamitosa. A malta ameaça derrubar a Casa de Penhores e nos linchar.
VOZES - Filho da puta, filho da puta, filho da puta!
GERENTE - E xingam a sua veneranda mãe!
EXCELÊNCIA - Bando de baderneiros, escroques, espúrios. Chame a Polícia.
GERENTE - Já chamei. Não há um policial disponível. A polícia está atrás dos assaltantes.
EXCELÊNCIA - Pois chame o Exército, a Marinha, a Aeronáutica, imbecil.
GERENTE - Estão nos morros! Excelência, se me permite, acho que poderemos resolver a situação democraticamente...
EXCELÊNCIA - Se disser uma asneira...
GERENTE - Talvez, se S.Excia. permitir, se aceitássemos os objetos que eles querem empenhar...
EXCELÊNCIA - São de ouro?
GERENTE - Não, quem ainda tem jóia é porque não precisa empenhar nada...
EXCELÊNCIA - São valiosos, pelo menos?
GERENTE - Alguns poucos. A maioria é utensílio doméstico, buginganga...
EXCELÊNCIA - Buginganga? E o senhor está me propondo encher a Casa de Penhores com bugingangas?
GERENTE - É o que eles têm, Excelência. E, se não aceitarmos, vamos ter que fechar a casa...
EXCELÊNCIA - Miseráveis! Povinho preguiçoso!
VOZES - Derruba, lincha! Filho da puta!
EXCELÊNCIA - Mas como calcular o valor dessas porcarias?
GERENTE - Não há como calcular, são muito diversificados. Daremos alguns trocados e eles ficarão satisfeitos. Depois, revenderemos tudo para as fábricas. Não será um mau negócio...
EXCELÊNCIA - Bem pensado, bem pensado...

FAZ-SE SILÊNCIO DO OUTRO LADO DA LINHA.

VOZES - Lincha!
GERENTE - Excelência, responda, nossas vidas estão em perigo...
EXCELÊNCIA - Se o estupro é inevitável, relaxe...
GERENTE - Perfeitamente, Excelência.

VOLTA A LUZ GERAL. OS CLIENTES ESTÃO SUBINDO PELO GUICHÊ E O FUNCIONÁRIO AGACHOU-SE DO OUTRO LADO.
FUNCIONÁRIO - Vou abrir o guichê agora... por favor, afastem-se... ordem, sem ordem não há progresso...

ELES DESCEM DO GUICHÊ, MAS CONTINUAM AMEAÇADORAMENTE AMONTOADOS.

FUNCIONÁRIO - (A VOZ VAI-SE APAGANDO E A LUZ MORRENDO) Por favor, façam fila... colaborem... pelo amor de Deus, da pátria, da família, da democracia, da cidadania...(FOCO SÓ SOBRE O FUNCIONÁRIO, AGORA FALANDO E ESCREVENDO) Batedeira elétrica, marca apagada, modelo 1964, cor azul...

O FUNCIONÁRIO CONTINUA TRABALHANDO MAS JÁ NÃO SE OUVE SUA VOZ.

CENA 6 - CASA DE DORA

DORA TRABALHA AVIDAMENTE, CONSUMINDO BALAS E CIGARROS. A MÃE ESTÁ DEITADA NO SOFÁ E TEM METADE DO VESTIDO COMIDO PELAS TRAÇAS. GEME. POR CIMA DELA E EM OUTROS CANTOS DA CASA, HÁ COROAS DE DEFUNTO.

MÃE - (TRÁGICA) O que será do seu tio sem mim!? O que será de você sem a sua mãe!!!???
DORA - Eu me viro, não se preocupe.
MÃE - Filha ingrata! Quer-se ver livre da pobre mãe doente!
DORA - Não enche o saco, mãe. Tenho muito o que fazer. Que que você acha d'eu botar esta flor vermelha aqui no meio?
MÃE - É falta de respeito para com os mortos. Vermelho é cor de prostíbulo e de comunista.
DORA - (RI) Besteira. Lembra quando a Carmem Miranda morreu? Veio lá dos States com a cara toda maquilada, a boca vermelho-sangue, nem parecia defunda...
MÃE - Coisa de protestante, coisa do diabo.
DORA - Ora, mãe, protestante também é cristão.
MÃE - (ENÉRGICA) Quem te ensinou isso, menina?
DORA - O Papa!
MÃE - Já não se fazem papas como antigamente!
DORA - (DÁ UMA RISADA) Você quer ser mais realista que o rei. Cristo tinha um manto vermelho.
MÃE - E sofreu muito.
DORA - Tudo bem, mas vou ter que botar esta flor vermelha aqui. As roxas acabaram.
MÃE - Dora, estou ficando dura!
DORA - É nervoso, mãe, relaxe. (DISTRAIDAMENTE, JOGA SOBRE A MÃE A COROA QUE ACABOU DE FAZER)
MÃE - O meu joelho direito já não se mexe.
DORA - Falta de ginástica. Você nunca fez ginástica! Vou tirar um pedacinho do seu vestido pra adiantar o serviço...
MÃE - Não, eu te suplico, filha! Sua mãe está moribunda, sua mãe está morrendo...
DORA - (CORTA UM PEDAÇO DO VESTIDO) Se está morrendo, não vai precisar mais do vestido. Pare com esta encenação, mãe.
MÃE - (TRÁGICA) Filha desnaturada! Desgraçado do meu útero que gerou tamanho monstro! Que o braço de Deus se encarregue da minha vingança, amaldiçoando toda a tua descendência!
DORA - Não tenho descendentes, mas isola! (BATE TRÊS VESES NA MESA), que praga de mãe é pior que bula de excomunhão papal!
MÃE - Dora, o outro joelho endureceu!
DORA - Tomara que endureça logo a língua. Só assim você pára de falar. Devia era estar aqui me ajudando. Você não pode ver trabalho que quer logo morrer.
MÃE - (GEME) Agora foram os intestinos que pararam. A morte está vindo de baixo para cima. (TRÁGICA) Ai de mim!

A CAMPAINHA TOCA.
DORA - (GRITA) A porta está aberta!

ENTRA UM MENSAGEIRO.

MENSAGEIRO - Sou do Serviço de Proteção às Vítimas das Enchentes.
DORA - Pois não.
MENSAGEIRO - Quero encomendar cinco coroas.
DORA - Só? Só morreram cinco pessoas na última enchente? Não acredito!
MENSAGEIRO - (PROFISSIONAL) Calculamos em cinco mil o número de mortos!
DORA - Uma coroa pra cada mil defuntos? Que miséria!
MENSAGEIRO - (PROFISSIONAL) Como não foi possível identificar os mortos, nosso Chefe determinou que fosse erguido um monumento ao Afogado Desconhecido. As coroas destinam-se à inauguração desse monumento. Aqui está o pedido oficial. Quando poderei vir buscar as coroas?
DORA - Tem urgência?
MENSAGEIRO - Muita urgência.
DORA - Dentro de 48 horas.
MÃE - Dora, não assuma comprimisso que você não possa cumprir.
DORA - Não se meta, mãe.(AO MENSAGEIRO) Em 72 horas, é mais certo.
MENSAGEIRO - Por favor, assine a segunda via do pedido. Aqui, no "ciente".

DORA ASSINA E O MENSAGEIRO VAI SAINDO.
DORA - O senhor não vai deixar um sinal?
MENSAGEIRO - Que que a senhora disse?
DORA - Um sinal em dinheiro. Preciso comprar material.
MENSAGEIRO - (SUPERIOR) No Serviço Público, não pagamos nada a dinheiro. Pagamos com ordem de pagamento. A senhora receberá uma ordem de pagamento por ocasião da entrega da mercadoria.(SAI)
DORA - Hum, ainda não é chefete e já tem pose de diretor! Ordem de pagamento! Não estou gostando dessa história! O Instituto de Controle da Mortalidade também vai pagar com ordem de pagamento. Encomendou vinte coroas para os suicidas de amanhã.
MÃE - De ontem.
DORA - De amanhã. Fui eu que recebí a encomenda!
MÃE - De ontem. Como que eles vão adivinhar os suicidas de amanhã?
DORA - Ah, eles fazem estatística! Cada dia da semana ou do mês, não sei muito bem, tem um determinado número de suicidas. A Helena me disse que eles, quando erram, erram por pouco. Diz-que fim de mês nunca tem menos de cem suicídios, declarados!
MÃE - Os homens estão esquecidos de Deus, minha filha! Até os padres - que Deus me perdoe! Ai, Dora, a morte chegou no fígado! Ai, ai, ai de mim!
DORA - (RINDO) Você é uma personagem de tragédia grega!
MÃE - A minha vida sempre foi uma tragédia, uma luta! (SUSPIRA)
DORA - Ora, mãe, você nunca fez porra nenhuma nessa vida!
MÃE - E criar você? Você pensa que não deu trabalho? Eu queria que você tivesse um filho pra ver como sofre uma pobre mãe! Dora, minha filhinha, o que será de você sem a sua mãe?!!!
DORA - Tenho mais de quarenta aninhos, mãe!

O TELEFONE TOCA.

DORA - (AO TELEFONE) Alô... é sim, pode falar... Fábrica de que?... Sim, sei, sei... 34 coroas para amanhã? Impossível, meu senhor, encomenda assim grande tem que ser feita com antecedência... Não, não estou brincando. Hoje em dia se pode prever essas coisas, é a tecnologia. O senhor sabe que de vez em quando há escapamentos de gases na sua fábrica. Então verifique a constância desses escapamentos, faça uma estatística do número de mortos e poderá ter uma previsão. Se no mês que vem, por exemplo, deverão morrer mais uns trinta e poucos, faça a encomenda agora. Se faltar uma ou duas coroas... O que? Vá você, seu... (BATE O TELEFONE) Covarde, xinga e desliga. (RI) Me mandou à puta que pariu, mãe.

A MÃE NÃO REAJE. DORA ESTRANHA AQUELE SILÊNCIO.

DORA - O cara lhe xingou, mãe.(A MÃE NOVAMENTE NÃO RESPONDE) Mãe?... (CORRE ATÉ ELA) Mãe!... (GRITA) Mãe... (SACODE-A) Mãe, não faça isso, não brinque com isso... Mãããeeee, não faça isso comigo, não morra, eu não posso viver sem você... Minha mãezinha...
MÃE - (ABRE OS OLHOS) Estou morrendo, filha...
DORA - (BERRANDO) Não, mãe, reaja, reaja, minha mãezinha...
MÃE - Traga o seu tio...
DORA - Não, você não vai morrer, você não pode morrer...
MÃE - Traga, quero me despedir dele...
DORA - (SE DESCABELANDO) Não, não, nãããooo, isso não pode estar acontecendo comigo... minha mãezinha, minha santa mãezinha...
MÃE - Dora, acalme-se. Morrer não é ruim... mas não esqueça a sua mãe...
DORA - Eu nunca te esquecerei, nunca. Juro.
MÃE - Agora traga o seu tio. Você promete que cuidará dele como eu cuidei?
DORA - Prometo.
MÃE - Jure.
DORA - Juro.
MÃE - Vá buscar o seu tio. Depressa!
DORA - Vou, mas não morra agora, espere eu voltar...
MÃE - Eu espero, vá...

EM PRANTOS, DORA SAI CORRENDO E VOLTA ABRAÇADA AO TIO, QUE É UM ESQUELETO. A MÃE BEIJA A CAVEIRA DO TIO, ENQUANTO DORA A PRANTEIA DESESPERADAMENTE. A CENA DEVERÁ TERMINAR COM UM FOCO DE LUZ BRANCA SOBRE AS PERSONAGENS ESTÁTICAS.

FIM DO 1º ATO



Fonte: http://www.theatro.ocrocodilo.com.br/


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